A produção artesanal de vinho em Santa Felicidade
Era prática corrente de praticamente todas as famílias de Santa Felicidade, até algumas décadas atrás, a produção caseira do vinho para consumo próprio. Segundo pesquisa da historiadora Altiva Pilatti Balhana (1958), a utilização de uvas de parreirais da região e sua colheita e processamento através da técnica da pisa eram muito comuns até os anos 50, posto que a bebida era historicamente parte integrante das práticas alimentares: “o vinho não só faz parte da alimentação diária, como ainda contribuem para a animação e a alegria dos grandes dias festivos, sendo ainda utilizado como remédio eficaz em certas doenças.” (BALHANA, Altiva P. Santa Felicidade: um processo de assimilação. Curitiba: João Haupt & Cia Ltda, 1958, p.129.)
Imagem da “pisa” da uva na família Esmanhoto, em Santa Felicidade (1956).
Fonte: BALHANA, Altiva P. Santa Felicidade: uma paróquia veneta no Brasil. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1978, p.95. Foto: Vladimir Kosák.
Aos poucos alguns colonos resolveram comercializar parte do excedente produzido, chegando a aumentar a área plantada e dinamizar a produção com maquinários. No entanto, a partir da década de 1970 a chamada praga da pérola praticamente dizimou os parreirais do bairro, fazendo decrescer consideravelmente a produção familiar e obrigando os produtores que comercializavam vinho a comprar as uvas do Rio Grande do Sul, prática corrente dos atuais comerciantes de vinho de Santa Felicidade.
Durante a pesquisa para o documentário Itálicos encontramos apenas uma única família que ainda produz vinho artesanalmente de seus próprios parreirais localizados no bairro. Bepe Basso, morador da rua Francisco Dalalibera conseguiu no correr dos anos manter vivas as videiras e, junto com o irmão e amigos, faz anualmente a colheita e processamento das uvas “terci” para a produção de vinho tinto, com pequeno moedor manual.
Parreiral de uvas terci da família Basso. Em primeiro plano, horta abaixo das videiras.
Em segundo plano, Bepe e colega coletando as uvas. Foto: Otavio Zucon, 2019.
Bepe Basso colhendo as uvas para o feitio do vinho. Foto: Otavio Zucon, 2019.
A família de Vitorino Miola, morador também da rua Francisco Dalalibera, produz vinho em pequena escala utilizando-se de parreirais próprios localizados no município vizinho de Almirante Tamandaré e também uvas vindas do Rio Grande do Sul. Com maquinário elétrico, barris coletados de famílias que deixaram de produzir e contando com a ajuda de muitos amigos voluntários, continuam a fazer e comercializar garrafas e garrafões na própria cantina de produção, na parte de baixo da casa de moradia.
Processo de esmagamento e fermentação das uvas na Cantina Miola.
Foto: Geslline Braga, 2019.
Os Caliari são uma família que tardiamente começou a fazer vinhos artesanais para comercialização, apesar de tradicionalmente seus antepassados fazerem a bebida “pro gasto”. O local onde mora o casal Moacir e Maria comporta também a adega e local de venda. A produção, que conta com a ajuda de filhos e netos, é vendida principalmente nas festas anuais do bairro. A região em que moram chegou a abrigar algumas das primeiras edições da Festa da Uva de Santa Felicidade.
Moacir Caliari na adega da família depositando o vinho no tonel.
Foto: Geslline Braga, 2018.
Família Caliari reunida após o esmagamento das uvas.
Foto: Geslline Braga, 2019.
A Vinícola Dall’Armi, capitaneada pelo mestre Lineu Dalarmi, produz vinhos para comercialização há várias décadas. Grande interessado na arte vinífera, Lineu foi aos poucos aprendendo as técnicas e, no convívio com especialistas do Rio Grande do Sul, aprimorou a produção, cuja escala vai às centenas de milhares de litros anuais. A produção é feita de forma ainda artesanal em barracão próprio, na região central do bairro de Santa Felicidade. A família se envolve em todas as etapas, da vinificação à comercialização, feita no mesmo local. Foram uma das primeiras famílias da antiga colônia a iniciar a venda de seus excedentes.
Lineu em entrevista para o documentário Itálicos.
Foto: Geslline Braga, 2017.
Interior da Vinícola Dall’armi, com Lineu, o neto e funcionários.
Foto: Geslline Braga, 2017.
O documentário Itálicos entrevistou membros dessas famílias produtoras, remetendo-nos às memórias sobre a uva e o vinho no bairro. No período de verão, época de produção da fruta, acompanhamos o processo de feitio dos vinhos em cada local, dando ao espectador noções das diferentes escalas, tecnologias utilizadas e tipos de produtos gerados.
A Festa da Uva de Santa Felicidade, que ocorre há mais de 60 anos no bairro, surgiu da necessidade de comercialização das uvas excedentes produzidas. Há muitos anos, o evento anual transformou-se em proporção e características, conservando no entanto a importância como momento de exacerbação da italianidade dos remanescentes da antiga colônia. Grupos folclóricos, canções italianas, comida típica e vinho compõem o mosaico de referências que congregam o sentimento de “italianidade” transmitida aos visitantes. E são esses membros das antigas famílias da região, que mantém, através de pertencimentos e referências culturais, os verdadeiros “itálicos”. Segundo a definição de Giovanni Bechelloni, “pessoas de origem italiana, descendentes em linha materna ou paterna de italianos que, tendo adquirido a nacionalidade e a língua de outros países, ainda mantiveram, no todo ou em parte, a marca de suas características culturais originais” (BECHELLONI, 2007,p.105).