Os imigrantes vênetos que formaram colônias no Brasil trouxeram consigo um alimento de uso regular em suas mesas no Norte da Itália, principal fonte de carboidrato das refeições: a polenta. Essa espécie de angu feito com fubá de milho era comido de diversas formas, a depender do horário e do dia da semana, entre os antigos colonos italianos de Santa Felicidade. Como cita Altiva Pilatti Balhana (1958, p.108), “o alimento quotidiano fundamental em Santa Felicidade é a polenta, prato característico das classes rurais italianas.”
As memórias saudosas evocadas a partir deste alimento remetem à época que se plantava o milho nas roças localizadas nas cercanias da antiga colônia. Período no qual as carroças transportavam a colheita do grão, que no caminho para o centro era deixado nos moinhos do rio Uvu e, no retorno, pegavam-se as sacas de fubá. As nonas preparavam a polenta no fogão à lenha, mexendo constantemente a mistura de água, sal e fubá numa panela grande, por cerca de uma hora. Era um tempo em que havia tempo para cozinhar e reunir as grandes famílias durante as refeições.
O bairro de Santa Felicidade, celebrado como referência de grandes restaurantes de culinária típica italiana, começou a trilhar este caminho a partir da década de 1940. O surgimento dos primeiros estabelecimentos do ramo - ainda acanhados e improvisados nas salas das casas de algumas nonas - serviam inicialmente os caminhoneiros que vinham do interior pela Estrada do Cerne, atual av. Manoel Ribas, ou os visitantes que acorriam ao rio Uvu para banhar-se em suas quedas dágua na região do Cascatinha, onde uma pedreira gerou também a necessidade de fornecer alimentação a seus trabalhadores.
Com o asfaltamento da av. Manoel Ribas, em meados da década de 1950, o bairro foi definitivamente integrado a Curitiba. Entre os anos 60 e 70, os restaurantes pioneiros foram aumentando seus espaços e surgiram outros - também tocados por membros das famílias locais e com foco na comida que se comia em suas casas – que tornaram Santa Felicidade, junto das indústrias locais do vime e do vinho, um bairro turístico, frequentado neste período sobretudo pelos próprios curitibanos. Nas décadas subsequentes os restaurantes se agigantam, alguns se transformando em “castelos”, e passam a atrair grande massa de turistas do Brasil e exterior. Em seus salões, a polenta - esse prato originariamente caseiro - foi assim ganhando o status de iguaria, preparado na forma de palito grosso e frito em óleo quente.
A “polentinha” de fubá branco, produto cultural e histórico da antiga colônia, é também carro chefe das festas do bairro. Na “Festa da Polenta, do Frango e do Vinho” serve-se gratuitamente ao público presente uma enorme polenta, revestindo este alimento de dimensões simbólicas da italianidade e tornando-o representação da hospitalidade de seus moradores.
Pacotes de fubá branco na cozinha do Bosque São Cristóvão, dias antes da Festa do Frango, Polenta e Vinho de Santa Felicidade. Foto: Geslline Braga, 2018.
Segundo a historiadora Giovanna Piffar, “foi na Bocca Maledetta, ponto de encontro já extinto de alguns italianos, que surgiu a ideia da polenta gigante. Uma matéria na televisão dizia que em Erechim (RS) tinha sido produzida uma polenta de 600 quilos. Assim, a Festa do Vinho de Santa Felicidade também deveria aparecer na televisão, no programa de televisão ‘Fantástico’ e a polenta gigante seria o motivo. A idéia foi amadurecendo, alguns italianos começaram a emprestar seus tachos, outros já começaram a inventar um fogão e uma colher movida pelo motor de uma furadeira para dar conta de mexer a polenta. E o resultado foi uma polenta de 21 metros e 70 centímetros. Com ela, o bairro conseguiu 15 segundos no “Fantástico” na segunda Festa do Vinho, há vinte anos atrás.” (PIFFAR, 2006, p.45)
O documentário Itálicos, portanto, buscou apresentar na narrativa do filme alguns momentos em que esse alimento se apresenta como síntese do vínculo com a ítalo-descendência. Filmamos a Festa do Frango, Polenta e Vinho (2018), cujo preparo dos alimentos envolve grande mobilização e quando se serve a “polenta gigante”. Esta é preparada a muitas mãos e mexida com grandes “mescolas” (espécie de pás de madeira). Quando pronta, é servida aos visitantes, despejada dos caldeirões sobre um enorme “panaro” (tábua) ao som da canção “La bella polenta”.
“Polenteira” da “Festa da Polenta, Frango e Vinho de Santa Felicidade”.
Foto: Otavio Zucon, julho de 2018.
“Panaro” da “Festa da Polenta, Frango e Vinho de Santa Felicidade”.
Foto: Geslline Braga, julho de 2018.
Entrevistamos também dois membros da família Boscardin, proprietária de um dos antigos moinhos de fubá da colônia - José Carlos Pereira Bertilla Boscardin. A estrutura de moagem não existe mais no local, porém José Carlos mantém muito bem preservada a belíssima Casa dos Gerânios, imóvel histórico e local original de moradia da família.
José Carlos Pereira e sua mãe, Bertilla Boscardin, em entrevista para o documentário Itálicos, defronte a Casa dos Gerânios. Foto: Geslline Braga, 2018.
Para rememorar a dimensão doméstica da polenta, filmamos com a família Caliari o preparo de uma tradicionalíssima polenta com frango. Seu Moacir, que desde a juventude auxiliava nas lidas da cozinha, tinha uma fotografia da antiga cozinha de sua avó, cuja arquitetura tinha as características das cozinhas do vêneto - uma chaminé aberta e a panela pende sobre o fogo atada a uma corrente de metal. Quem mexe a polenta utiliza uma tabuinha, pressionada com o joelho, para firmar a panela.
Moacir Caliari preparando a polenta na cozinha da casa da família, em 1955.
De outra parte, o cineasta Valêncio Xavier nos brinda, em seu documentário Na Santa Felicidade (1978), com imagens de uma senhora do bairro (não identificada) preparando a iguaria em seu fogão a lenha. Itálicos inseriu no bloco sobre polenta parte dessa linda sequência.
Frame do filme “Na Santa Felicidade”, de Valêncio Xavier, 1978.
Por fim, o documentário entrevistou a antropóloga Fernanda Maranhão, autora de importante pesquisa sobre as relações entre identidade cultural e alimentação em Santa Felicidade, que ajuda o espectador a desvendar a historicidade e compreender os sentidos simbólicos deste singular alimento no contexto dos restaurantes e festas do bairro.
Referências bibliográficas:
MARANHÃO, Maria Fernanda Campelo. Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: um estudo sobre restaurantes, rituais e (re)construção de identidade étnica. Curitiba: SAMP, 2014.
PIFFAR, Giovanna. A polenta como forma de expressão da cultura popular italiana. Monografia curso de História. Curitiba: UFPR, 2006.