A atividade milenar dos ferreiros, no bairro de Santa Felicidade, configurava uma espécie de mecânico dos tempos em que as carroças rumavam diariamente rumo ao centro levando os produtos da colônia – verduras, ovos, lenha, cestos de vime, roupa lavada. Tinham funções diversas, manipulando o metal para as ferramentas da lavoura, manivelas de poço e, principalmente, confeccionando ferraduras para os cavalos e rodas para as carroças.
No documentário, o ofício do ferreiro representa o laço com esse passado rural da comunidade e, ao mesmo tempo, o elo de ligação entre a antiga colônia e o mundo urbano da cidade através do lento percurso que os carros a tração animal faziam, conduzidos pelas nonas e outras mulheres da família, que não se furtavam em saltar de uma carroça a outra para atualizar as conversas rumo ao centro.
No escopo de pesquisa do projeto Itálicos não estava previsto abordar o universo dos ferreiros, profissão considerada quase extinta na atualidade. No entanto, a equipe resolveu incluí-la no documentário por dois aspectos: há ainda no bairro ao menos uma família que mantém viva a atividade, transmitida entre as gerações (Ferraria Esmanhoto) e que continua exercendo-a, ainda que bastante transformada. Outro fator que nos levou a decidir pela inclusão desse ofício no filme foi o encontro com o sr. Germano Estella, antigo ferreiro já aposentado que foi filmado por Vladimir Kosák trabalhando na ferraria da família, em 1956. Depois de muita resistência, alegando que aos 92 anos de idade não se lembraria de nada, ele nos concedeu uma entrevista. Assistiu pela primeira vez ao filme em que faz ferraduras e a roda de uma carroça com seu pai, Pedro, lembrando-se de detalhes do dia da filmagem e da presença do cineasta. Recordou-se, por exemplo, que Kosák pediu que retirasse algumas telhas do barracão da ferraria, para haver condições de luminosidade para filmar em seu interior. Lamentavelmente, Germano faleceu pouco antes do documentário Itálicos ficar pronto.
Sr. Germano Estella vendo álbum de fotografias antigas durante entrevista
Frame do filme “Ferreiros”, de Vladimir Kósak (1956), onde aparecem Pedro e Germano Estella fazendo ferradura.
Assim, além da entrevista com o sr. Germano Estella, filmamos também as lidas da profissão na Ferraria Esmanhoto, onde Agostinho e Cristian (pai e filho) trabalham, entre uma infinidade de funções, especialmente com soldas especiais. O barracão, localizado na av. Manoel Ribas, ao lado do Restaurante Veneza, recebe diariamente dezenas de clientes, cada qual com sua demanda a resolver. Entre betoneiras, motores de carro, panelas, fogões e peças de metal as mais diversas, Cristian apresenta aos espectadores aspectos das lidas com a forja - técnica milenar que envolve forno, bigorna e marreta - e, como nos lembra Agostinho, a essencial ferramenta deste ofício: a criatividade.
Cristian Esmanhoto, na ferraria da família, realizando reparos em ferramentas na forja.
Foto: Geslline Braga, 2018.
Bigorna e marreta na Ferraria Esmanhoto.
Foto: Geslline Braga, 2018.
Agostinho Esmanhoto mostrando tipos de ferraduras.
Foto: Geslline Braga, 2018.
Com a popularização do automóvel e o asfaltamento da av. Manoel Ribas, na década de 1950, a profissão do ferreiro foi aos poucos perdendo importância ou sendo bastante transformada. Ainda assim, alguns laboriosos artífices, como os Esmanhoto, mantém a atividade viva e chamam a atenção de pesquisadores e escolas, que volta e meia acorrem à ferraria. Sobrevivem também as memórias do tempo em que o barulho do martelo na bigorna ecoava pela região como os sinos da igreja.
Imagem de obra de asfaltamento da atual av. Manoel Ribas, altura do cemitério de Santa Felicidade. Foto: Arthur Wischral, 1954. Acervo Casa da Memória de Curitiba.